domingo, 29 de março de 2009

domingo, 29 de março de 2009

Alucinação

Summer interior - Edward Hopper (1909)



Naquela noite fora dormir bem mais cedo que de costume. Dormia pouco, no máximo seis horas, quando a maioria das pessoas que conhecia, não podiam dormir menos que oito. Mas não poderia ser rotulada de insone, dormia. Vinha de um cansaço que não saberia explicar. Acabara de voltar de férias, que sempre lhe deixava com vigor para uma nova temporada de trabalho árduo. Gostava do seu oficio, então não entendia esse cansaço profundo que vinha sentindo.

É verdade que esse ano o escritório estava fervilhando: relatórios, processos e aqueles telefones que não paravam de tocar. O tempo continuava quente, o outono demorava a se instalar para refrescar seus dias. Perscrutava cada um dos fatores em sua rotina que pudesse estar lhe causando esse desconforto interno, seu cansaço, sua tristeza. Gostava de entender tudo. Sofria e vivia. E queria entender.

O certo é que acordou no meio da noite como se já fosse dia e seus pensamentos rodopiaram numa ciranda incessante. Queria se entender. Imagens e sons. Vozes e palavras. Imaginou que fosse alucinar. Tudo rodava. Havia uma porta, que estivera lá por anos e que deixava transparecer uma escuridão. Nunca tinha ousado atravessá-la... até um certo dia. No início sentiu falta de ar, depois falta da luz, mas aos poucos sua retina se adaptou ao escuro, à situação. E uma voz lhe direcionava e ia tateando aquele mundo obscuro. Não saberia descrever suas sensações: prazer, alegria, euforia, medo, dor... e, lá no fundo, uma intuição de sofrimento... queria seguir e queria voltar.

Imergiu nesses pensamentos e quando percebeu era dia. Não sabia ao certo se pensara ou se sonhara todas as imagens, sons e sensações. Um segundo e uma convicção lhe aflorou à mente: não podia confundir o sonho com realidade, sua dor e cansaço talvez tivessem origem nessa confusão. Decidiu levantar. Tomou nas mãos poesias, enrolou-as em papel de seda azul e vermelho, abriu a porta, depositou tudo no fundo da prateleira da esquerda, fechou à chave e guardou-a junto ao coração.
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sábado, 21 de março de 2009

sábado, 21 de março de 2009

Sons, sabores e cores de sábado



Pois que os sábados eram dias quentes, independente da estação do ano. Nunca era tão frio que dispensasse sua rotina agradável do inicio do fim de semana. Acordava tarde, tomava seu café sem açúcar – pois o amargor lhe agradava. Sentada na varanda da casa, cumprimentava os vizinhos que passavam conversando a caminho da feira, carregando as sacolas multicores. O dia era sempre colorido: verdes, amarelos, vermelhos, que brotavam de todos os lados, derramavam-se e tingiam seu olhar sorridente.


No sábado organizava suas roupas para lavá-las e aprontá-las para a nova semana. Tirava o pó da casa, trocava a roupa de cama, as toalhas de banho. Colocava uma música a tocar e a melodia espalhava esperança. O almoço era simples, mas comida caseira, elaborada sem correrias. A salada de frutas de sobremesa, muito bem preparada, com as frutas sendo cortadas e organizadas delicadamente, como se fossem pinceladas de tinta sobre uma tela. O sabor deliciava todos que provavam aquela mistura deliciosa, comendo devagar e tentando desvendar todos os sabores em particular. E ao morder cada pedacinho, sentir o sumo inundar a boca, um prazer quase proibido!


Também reservava, na tarde de sábado, um período para a sesta, um soninho curto, mas renovador. Depois acordar, pintar as unhas, lavar o cabelo, escolher com cuidado a roupa e as sandálias de salto para ir ao cinema, no inicio da noite, de mãos dadas com seu amor. Jantar e retornar refeita da rotina da semana.


O domingo chegava com a promessa de que tudo seria melhor. Almoço em família completava seu cenário de fim de semana. Havia realizado sua catarse semanal. Era uma rotina modesta, mas a rotina que lhe dava prazer e lhe fazia feliz.


[Post que publiquei no extinto Blog Tagarelas Assumidas em 2008, com pequenas modificações]
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domingo, 15 de março de 2009

domingo, 15 de março de 2009

Música e História

Peguei no mesmo endereço indicado abaixo

Dezembro. Final de ano é sempre muito corrido. Mil coisas para deixar em dia, no trabalho na vida pessoal, para então aproveitar uns dias ao lado da família. Mas antes disso, muita água rola por baixo da ponte. A vida é uma gangorra ou uma roda gigante ou uma montanha russa. Um dia tranqüilo e outros cheios de grandes emoções. Se fosse diferente, creio que acharíamos muito chato. Mas tem coisas que podíamos perfeitamente passar sem.

Eu correndo de um lugar para outro para resolver problemas de trabalho. Chove em Porto Alegre, horário do almoço. E já que não vai dar tempo de almoçar, aguardo um pouco para ver se a chuva diminui. Olhei pro lado e vi que estava acontecendo uma exposição, no hall de entrada do cinema universitário. Cartaz enorme, com uma foto antiga do Rio de Janeiro e o rosto de um homem, que me chamou a atenção e atravessei para olhar.

O homenageado: João Cândido, o Almirante Negro. Pensei: quem deve ser? Nunca tinha ouvido falar. E comecei a ler a história desse homem, cuja luta eu não aprendi na escola. João Cândido, marinheiro gaúcho, nascido em 24 de janeiro de 1880 morreu aos 89 anos.

No início do século XX, ano de 1910, durante alguns dias, mais de dois mil marujos movimentaram a Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, ao tomarem posse de navios de guerra para exigir o fim dos castigos corporais na Marinha do Brasil.

Em abril de 1910, o navio blindado “Minas Gerais” chegou à Baia da Guanabara, era o navio mais bem equipado do mundo, mas, as questões de regime de trabalho, o recrutamento dos marujos, as normas disciplinares e a alimentação deixavam a desejar. O retardamento das reformas nessas áreas fazia lembrar os anos dos navios negreiros. Tudo na Marinha, Código Disciplinar e recrutamento, principalmente, ainda eram iguais ao da monarquia. Homens de bem, criminosos, marginais eram juntamente recrutados para servirem obrigatoriamente durante 10 a 15 anos e, a desobediência ao regulamento tinha a punição de chibatadas e outros castigos.

Mas, em 16 de novembro de 1889, Deodoro da Fonseca, através do Decreto nº 3 – um dia depois da Proclamação da República – acabou com os castigos corporais na Marinha do Brasil mas, um ano depois tornou a legalizá-los: “Para as faltas leves, prisão e ferro na solitária, a pão e água; faltas leves repetidas, idem idem por seis dias; faltas graves 25 chibatadas”.

Os marujos não aceitaram e começaram a conspirar, principalmente alguns que estiveram na Inglaterra e viram a diferença de tratamento dos que lá eram recrutados. Em 22 de novembro de 1910, comandado por João Cândido Felisberto, a Revolta da Chibata eclodiu. João Cândido assumiu a esquadra de “Minas Gerais”. No combate morreram o Comandante Batista das Neves, alguns oficiais e muitos marinheiros.

Como não tinha outro jeito a dar – eram 2.379 rebeldes – e estavam com as mais modernas armas que existiam na época, o Marechal Hermes da Costa e o parlamento cederam às exigências, aprovaram um projeto idealizado por Rui Barbosa – que tinha apoiado o retorno dos castigos anteriormente – pondo fim aos castigos e concedendo anistia aos revoltosos. [ Tirei esse texto daqui ].

Ao ler a história do Almirante Negro, também descobri que este foi homenageado na música de Aldir Blanc e João Bosco – Mestre Sala dos Mares. Sempre gostei das músicas cantadas pelo João Bosco, mas não sabia que essa música era uma homenagem a esse personagem da história do Brasil. Pode até ser que eu esteja enganada, mas creio que recordaria se tivesse estudado sobre ele...mesmo que tenha sido há um bom tempo atrás...

Após outro levante na Marinha, ele foi expulso, banido da corporação, mesmo não tendo participado. Viveu precariamente, trabalhando de estivador e descarregando peixe na praça XV no Rio de Janeiro.

O presidente Luis Inácio Lula da Silva assinou em 23 de julho de 2008 uma Lei concedendo anistia póstuma a João Cândido Felisberto. Uma homenagem tardia, mas necessária a um homem que lutou, não por interesse próprio, mas por uma causa justa para muitos.

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A música Mestre Sala dos Mares - Aldir Blac e João Bosco - com Elis

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quarta-feira, 11 de março de 2009

quarta-feira, 11 de março de 2009

Consideração sobre música do Chico

Imagem da Internet

Um dia desses postei uma música do Carlinhos Brown e comentei que tenho uma mania de ficar ouvindo uma mesma música durante dias a fio. Sábado, quando escrevia o texto sobre mulher, veio uma frase na cabeça: não se afobe! Imediatamente me remeteu a música do Chico – Futuros Amantes - e coloquei aqui no blog.

Hoje, entre uma leitura de trabalho e outra, fui ao youtube buscar uma música qualquer para ouvir enquanto trabalhava, pois adoro ouvir música enquanto escrevo, leio. Tem pessoas que perdem a concentração, eu não. Então me lembrei de verificar se havia um clipe com Futuros Amantes. Não só havia como encontrei o Chico comentando a música, com a linda imagem dele, e outras da linda cidade do Rio de Janeiro. Não resisti! Resolvi compartilhar com quem passa por aqui. Eu acho que vale a pena olhar.

Bom, sigo com a música na cabeça. Um professor meu, disse um dia, que essa perseguição é um tipo de epilepsia, a epilepsia do lobo temporal. É como uma descarga contínua de neurotransmissor nessa área do cérebro. E faz todo sentido, com tudo que entendemos hoje sobre o sistema nervoso central.
Se fosse só a música do Chico já seria o máximo, mas ele comentando... Ah, eu não resisto!


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O vídeo - Futuros Amantes

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sábado, 7 de março de 2009

sábado, 7 de março de 2009

Mulher: complexo abrigo


Olhou a casa sufocada entre altos prédios. De novo sua mente fez acrobacias e ela sentiu-se meio como a casa. Uma mulher, que muitas vezes se sentia uma menina, amedrontada com as inúmeras possibilidades e desafios que a vida ia lhe oferecendo. E tinha ímpetos de ir a um jardim e ficar em companhia do vento, das árvores e das flores. Gostava do vento: do vento leve, da brisa, mas também tinha uma adoração pela ventania. As pessoas não compreendiam quando comentava que gostava de tempestades. Mas gostava e podia sentir o cheiro delas se aproximando. Entre árvores e brisa, ela sentia-se segura, acalentada, como as crianças quando se apegam aos seus amigos de pelúcia e aquilo lhes proporciona conforto. Também imaginava que era a brisa, e sendo brisa poderia ir tocar seus amores distantes.

Voltou a mirar a velha casa... sem dúvida era ela e aqueles prédios gigantes, monstros de toda espécie que tinha de enfrentar todos os dias. Era forte e resistia, mas era complexa demais e complicada demais para se explicar. Era mulher e era uma casa, e era menina e era um refúgio, e sorria e lutava quando tinha que defender suas crenças; e era rígida e era flexível. Tinha uns não-sei-o-quê que surgiam de vez em quando, que lhe deixava abatida, e não queria compactuar com sofrimento, mas era estranha, era mulher e era humana - mesmo que por vezes se sentisse como se não fosse desse planeta! Uma casa antiga no meio de muito concreto na megalópole. Mas sim, era humana e como todo ser humano cheia de “grandes-pequenos” defeitos, de “pequenas-grandes virtudes”. Sucumbia em ser... humana.

Amava e sofria por amor, e rejeitava sofrer por amor; distribuía afeto e recebia afeto, que nem sempre lhe parecia amainar a sua necessidade; sentia raiva e dizia que sentia, mas também não dizia e sofria por sentir a raiva. Quando parava para pensar sobre amor e raiva, o sentimento que permanecia nela, acima de todos os outros, era um... certo amor incondicional pela humanidade. E era por isso que acreditava, que um dia – que podia ser muito distante – a humanidade deixaria de maltratar uns aos outros. Sorria ao pensar nisso e chorava por imaginar o hoje.

Talvez fossem aqueles hormônios que deixavam a mulher, a menina, tão complexa e mesmo aquelas que não eram mães se comportavam um pouco, em algum momento da vida, como se o fossem, oferecendo seu coração e seu corpo como casa, como abrigo, numa docemente dolorosa rotina de perdas e ganhos. Olhou mais uma vez aquela imagem e sentiu sufocar, como a casa. Seguiu seu caminho, não olhou mais para trás.
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[O dia 08 de março é considerado o dia internacional da mulher para lembrar o fato ocorrido em Nova Iorque, no qual mulheres trabalhadoras da indústria téxtil protestavam contras às más condições de trabalho e a morte de outras em um incêndio criminoso durante os protestos. Desconsiderando o sectarismo feminista, pode-se tomar esse dia como um marco histórico no caminho da mudança das diferenças econômicas, sociais e políticas entre homens e mulheres. Minha convicção é por igualdade entre pessoas, seres humanos. E é esse equlíbrio, que creio necessário].
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