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A moça estava sentada no sofá e olhou a sua volta: o livro esquecido na cadeira, a televisão sem som que mostrava mais um daqueles programas chatos de todos os dias. Olhou para a janela e vislumbrou a noite e as luzes lá fora. Conteve mais uma vez o impulso de ir olhar através dela e tentar enxergar o rapaz que ficava escrevendo, sentado próximo à sua própria janela no apartamento ao longe, mas não tão longe que não pudesse lhe acompanhar a rotina noturna.
Chegava em casa sempre próximo das vinte horas e ele, lá do outro lado, saía do quarto, organizava coisas em cima da mesa, buscava uma jarra com água e um copo, que depositava junto aos livros e papéis. Sentava, abria um livro, lia alguns trechos e depois escrevia por horas.
Acostumou-se a olhar a cena. Fazia suas tarefas com a cortina aberta e quando terminava tudo, ficava lá, parada. Era uma forma de companhia observá-lo, ela que muitas vezes era tomada por uma sensação de imensa solidão. Deu-se conta que isso virava um vício, acompanhar e imaginar as muitas histórias que aquele rapaz devia escrever – essa era sua fantasia. Aquele dia resolveu que não se aproximaria da janela. Iria ler um livro, ver um programa na TV, qualquer outra coisa. Entretanto, nada conseguia prender-lhe a atenção. Tinha vontade de encontrar o rapaz e conversar com ele, contar todas as suas impressões da vida e saber se era realmente um escritor, pois sabia que eles se dariam muito bem, conversariam como se conhecessem há tempos. Mas não tinha coragem para isso, contudo pensava no quanto perdia olhando o tempo passar.
Analisar a vida e os sentimentos era seu passatempo predileto. Acordava cedo, e entre caminhada, metrô e ônibus, demorava até duas horas para chegar ao trabalho. E era nesse momento que pensava na sua solidão, na das outras pessoas; olhava para cada rosto que passava e tentava imaginar suas dores e felicidades, mas tinha talento especial para imaginar a dor. E cada fisionomia contraída doía nela e, não raro, lágrimas indiscretas corriam de seus olhos, pois a dor alheia potenciava a sua própria.
Talvez se alguém a olhasse como ela olhava os outros, desvendassem sua solidão, mas não via ninguém olhá-la, muitas vezes sentia que podia entrar e sair dos lugares como se invisível fosse. Um olhar atento perceberia que aquele sorriso sempre aberto, não era acompanhado pelo olhar, que parecia buscar no além alguma emoção perdida.
Pensava nos amores, nas paixões, imaginava como seria um grande amor correspondido. Não acreditava muito naquele amor imortal que lia nos livros, tinha dificuldade de imaginar que os amantes pudessem se encontrar na mesma sintonia, mas não discutia isso, afinal, era simplesmente a sua impressão e podia estar distorcida por acontecimentos do passado. Se ela sonhava com um amor? Sim, sonhava! Mas era bem despretensiosa, quase distraída no seu querer. Seu amor não precisava ser ilimitado ou imortal, mas precisava de carinho, de respeito, de compreensão, de afago e afeto, de honestidade. Ao definhar o amor, saberia que tinha se entregue por inteira e vivido por inteiro sua emoção, sem máscaras.
Seguia sempre seu caminho com esses e outros tantos pensamentos. Ao encontrar o rapaz da janela, teria com quem conversar sobre seus sentimentos e queria ouvir os dele também. Talvez um escritor necessitasse dessa solidão, talvez não fosse um escritor, talvez não fosse solitário. Somente tinha uma "quase-certeza" que precisavam conversar e tinha medo que não acontecesse, que o tempo passasse e perdesse a oportunidade de encontrá-lo e todo o enredo criado nas longas noites à janela teriam sido em vão.
Naquela noite, não foi até a janela, pegou o livro que jazia na cadeira, abriu em qualquer página e coincidentemente [na verdade não, deve ter aberto nessa página de tanto que buscava aquelas frases] leu nela o trecho sublinhado a lápis de Para uma Avenca Partindo, do Caio Fernando Abreu, que mais gostava:
...deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim dum jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira...em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço...
Enquanto lia isso, novamente sentiu dor no peito, um aperto enorme, não sabia o quê aquilo queria dizer, ou sabia e não queria saber. Largou o livro e foi espreitar a janela. O rapaz não estava mais lá, o tinha perdido de vista, as luzes apagadas. Sentou e tentou não sentir desamparo, respirou fundo, organizou seu próprio espaço como se assim organizasse pensamentos e sentimentos, guardou o livro na estante e foi deitar, desejando que no caminho para o trabalho pudesse acontecer algo inusitado, que lhe fizesse sorrir com os olhos. Tanto lutou que não sentiu desolação e dormiu sorrindo as poucas horas que restavam antes da alvorada.
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