quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Aromas e imagens do passado


Ao acordar os cheiros tomaram-na de assalto. Levantou-se da cama com os sentidos no passado e caminhou pela casa vazia buscando os sons e as imagens que combinassem com os aromas que dominavam o ar. Pela fresta da janela viu a luz do sol que já aquecia lá fora. Lentamente entrava e saia dos quartos, sala e cozinha. Tanto buscou na lembrança que logo surgiram os sons de risos e conversas animadas e todas aquelas pessoas do passado sentadas à mesa, esperando o café que a senhora coava sobre o balcão da pia. Sentiu o calor e o cheiro da comida que assava no forno, pois a ceia da noite sempre começava a ser preparada no início da manhã, no dia da festa. As conversas eram sempre agradáveis a esse horário, todos contavam alguma aventura ou uma palhaçada qualquer que fizesse todos rirem alto. Havia muito a ser feito até à noite, mas o café da manhã talvez fosse o momento mais sublime daquela reunião de família. Faltavam poucas horas para um novo ano e aquelas pessoas não se encontravam com frequência, por isso aquela felicidade latejante, que podia ser sentida como a brisa fresca que nos faz fechar os olhos e respirar profundamente. Ela, ali, olhando a cena, era o fantasma que se movia por entre os que conversavam sem ser vista saboreando os sons e aromas. Tocava os rostos e as mãos que elevavam as xícaras ao ar para bebericar o líquido escuro, sentia a textura das peles sem ser sentida. Olhou no fundo dos olhos de cada um e viu um rio repleto de muitas pedrinhas roliças no fundo, como se cada uma fosse um projeto de felicidade para o novo ano. Dos seus próprios olhos rolaram lágrimas e de repente lembrou que tudo aquilo fazia parte de um sonho, de imagens do passado. Queria entrar na cena e rir alto também, mas sua saudade era mais aguda, doída e novamente aquela sensação de ser líquida foi mais forte, sentou num canto do grande banco de madeira para chorar, lançou um olhar para além da janela, o caminho na entrada da casa estava tingido de lilás do bougainville que havia plantado para lembrar-se da casa de sua juventude e foi como se as pedrinhas-do-rio-dos-olhos surgissem novamente e fizeram lembrá-la que este era somente um momento, que logo iniciaria outra etapa e novamente todos poderiam sorrir juntos. Deixou-se ficar ali, com as imagens coloridas e barulhentas indo e vindo, nem sentiu o vento que soprou e balançou as cortinas.
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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Enchente

Salto de Corumbá - GO

Nadava meio desajeitada, braços e pernas sem sincronia. Vez por outra deixava-se flutuar, assim descansava e, sofregamente puxava o ar, lábios cianóticos aspiravam em busca de oxigênio. Os olhos fechavam e abriam em desespero, tentando enxergar a margem oposta.

Inútil.

Sentia a correnteza carregando-a cada vez mais para adiante. Seguindo o curso não chegaria ao outro lado, talvez despencasse num salto que desvendaria um volume ainda maior de água, que por fim a levaria ao mar.

Ao lado dela um galho de árvore seguia sem resistência. Pequenos olhos se esticaram próximo dali e a cobra d’água pareceu desdenhar da sorte daquele ser que se debatia. De verdade não sabia se queria resistir à força que a levava cada vez mais distante do seu destino. Mesmo porque esse destino fazia questão de ignorá-la e se ignorava não existia. E não existindo, suas palavras não ressoariam e sua sede não seria saciada. Foi sendo levada por mais alguns metros até que retornou ao nado torto, buscando o improvável destino.
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terça-feira, 12 de outubro de 2010

terça-feira, 12 de outubro de 2010

de janela e olhares


***

andava sem rumo

era como uma folha

que flanava ao vento

e que qualquer hora iria descansar

em lugar desconhecido

erguia os olhos para observar

os antigos prédios e suas janelas

as janelas sempre lhe fascinaram

e nem sabia o porquê

janelas guardam e mostram intimidades

janelas protegem da exposição completa,

mas sugerem um horizonte

Por agora, as janelas, com seus vidros embaçados

de pó e fuligem,

protegiam dos monstros que lhe habitavam

uma dor de saudade

atirou uma pedra e estilhaçou seu olhar

que vazou em um milhão de gotas ensanguentadas


* a foto é minha

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quinta-feira, 16 de setembro de 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Era noite, talvez dia...



Era noite, mas talvez dia.
Pois as noites e os dias não mais se diferenciavam.
Não dormia.
Ou pelo menos imaginava que não dormia.
Sendo assim, não descansava.
E tinha uma penumbra, que não cessava.
Penumbra nos olhos.
Ou talvez no espírito, meio atordoado que andava.
Era vagar por terrenos não sólidos, mas queria o solo,
Que fizesse sentir além daquela fluidez translúcida.
Pensar, pensar, pensar.
A ordem da vez era pensar.
Mas todos os pensamentos eram emaranhados de seda,
ao puxar um deles... arrebentava.
Puxava o próximo,
e o próximo.
Sem nem mesmo concretizar a vil existência.
Era noite ou era dia?
Nem sabia.
Somente pedia para acordar do sonho,
ou do pesadelo da pesada existência.
Queria viver livre e
leve.

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* A imagm eu peguei no Google Imagens. A poesia foi um parênteses na minha ausência, para inaugurar mais um template idealizado e realizado pela Layla Lauar, a grande responsável pela existência do Sopros. Sinto saudades dos amigos, mas os compromissos me aprisionam.
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quarta-feira, 21 de abril de 2010

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Imagens e melancolias

Os dias são quentes e os sabores se perderam numa sensação de “sem-paladar”.


As imagens embaralham e me curvo no cansaço dos dias sem fim.


Os dias não tem fim e os pensamentos são como passos largos, correndo.


As passadas são mais longas e paralisam-me num suor de febre sem calor,


O calor que molha, mas não encharca o suficiente para lavar as saudades que insistem em enlouquecer.


Os sons prometem luz para dias que mostram sorrisos sempre pálidos.


Grito num cano de esgoto esquecido na rua - no mesmo cano que o homem sentou para fazer a fotografia -
e todos os monstros que adormeceram dentro de mim saem e deixam um buraco no meu peito.

Aspiro o ar profundamente na tentativa de recompor meu ser e seguir na ponta da vida,


Que nem se importa com aquele sentimento de profunda solidão que tomou conta do meio do meu dia, quando todos sorriam do outro lado.
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Sobre a imagem: peguei no Google Imagens, se souber autoria me avise nos comentários.
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sexta-feira, 9 de abril de 2010

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Tangida pela vida

John William Waterhouse - Ophelia


E se assim vivi,

pois é assim que se vive

quando nem se tange a vida,

e dormi, sobretudo quando me atordoava

a fúria louca da busca,

que entrelaça meu querer

num pulsar completamente

estranho

correndo e navegando

voltando e mergulhando

num sopro sôfrego

que inala verões findos

que levaram um amor

de papel marchê
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sábado, 3 de abril de 2010

sábado, 3 de abril de 2010

Reminiscencia de verão

Imagem da internet


Título alternativo: Febre em noite clara.

Noite clara e quente. A lua, em sua face mais brilhante, se enchia luminosa. Os barulhos silenciosos preenchiam a madrugada. Um ou outro som de motor, do solitário veículo e seu motorista, que rodavam na noite em busca de consolo para sua alma angustiada. Era verão e como de hábito, todos escapavam para se refugiar junto ao mar, no litoral. A cidade era dos errantes, dos solitários, dos melancólicos, dos perdidos, dos desprovidos. Mas também era o momento de aproveitá-la na sua plenitude.

Rolava na cama sem conseguir dormir, tentado identificar os silenciosos ruídos. Em vão, pois a cada tentativa, menos audível ficavam. Somente os sons da sua própria mente é que gritavam alto e a impediam de descansar. Resolveu tomar uma ducha fria, que talvez espantasse o calor e seus fantasmas para o além. Deitou o corpo molhado na cama e tentou adormecer. A lua invadiu o quarto com sua luz, penetrando pela fresta da cortina, que fechara para simular uma privacidade solitária que não almejava.

A luz fria e branca fez com que se sentisse acompanhada. A lua – diziam – era companhia dos loucos, dos poetas e solitários. Talvez tenha sonhado, mas era bem possível que estivesse mesmo era enlouquecendo, pois sentiu a presença de um ser se materializando naquele instante. A lua pareceu como um ente com quem podia conversar e falar sobre suas angústias, sobre os gritos que atormentavam sua mente solitária. Por quanto tempo teria ficado ali, deitada e sentindo o feixe branco como se fosse uma deusa que pudesse realizar seus desejos? Não poderia quantificar, somente se deixou ficar e nem o calor mais a incomodava.
Conversou com a lua e fez um pacto: ela lhe traria o amor com o qual sonhara, que alimentaria sua alma e se banharia no seu corpo. Corpo e alma preenchidos por esse amor, navegaria pelos mares calmos ou agitados da existencia, sem temer a solidão que outrora lhe afligira. Em troca contemplaria a lua em todas as suas fases, pois é verdade que o astro estaria no céu a fitá-la com generosidade, mesmo quando só mostrava sua face escura e todos os seres esqueciam sua existencia.

Não sentiu-se adormecer, mas ao abriu os olhos já existiam ruídos e uma efervescencia no ar. As crianças da vizinhança gritavam e riam festivamente na rua. Levantou ainda tonta da cama e foi à janela espiar. Era dia e chovia. A correria barulhenta e a energia que emanava lá debaixo enfim sossegou sua alma. Olhou para céu buscando a lua, somente por sabê-la no infinito. Vestiu uma roupa e desceu para tomar banho de chuva. Correu e gritou e brincou com os pequenos, sentindo momentaneamente que a solidão se esvaia e sua febre cedia.
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domingo, 21 de fevereiro de 2010

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Tempestade

Peguei na internet


De repente o céu tornou-se cinza. A rapidez como aconteceu lhe deixou perplexa e, um sentimento estranho também se insinuou dentro dela. Abriu a janela do apartamento para sentir o vento forte e olhar os blocos de chumbo que se formaram no céu. Pareciam sólidos. Debruçou-se no parapeito da janela e começou a observar a sutil movimentação que se seguiu ao escurecimento da tarde.

Nos apartamentos dos prédios ao redor do dela, um rapaz que segurava uma caneca, e também olhava o céu, abriu a janela para sentir o vento; na varanda uma mulher fechou a porta para impedir que vento e chuva invadissem a sala; a moça do andar de baixo pressentiu sua presença e esticou a cabeça para fora e para cima; uma cortina tremia lá longe, como uma bandeira. E os poucos carros que estavam na cidade naquele derradeiro fim de semana de verão transitavam apressados.

Naquela tarde de domingo nem o cheiro de bolo assando - em algum lugar ali perto – lhe fez sentir-se feliz. Os grossos pingos de chuva começaram a cair das nuvens de chumbo acima da sua cabeça e ela deixou-se ficar na varanda sentindo o rosto molhar. Queria mesmo que aquela água lavasse sua alma e seus pensamentos, gostaria que a força demonstrada por essa tempestade pudesse romper o ciclo de melancolia que novamente se instalava nela. O corpo tremia de pensar que tudo se repetia de forma insistente: o encontro, a paixão, um novo querer, o apego, o cuidado, o carinho e o abandono. Sem novidades no seu destino, se apegava a delicadeza de instantes como aquele, quando a natureza mobilizava muitos aparentemente-diferentes para admirar sua força. Todos se encontraram em suas janelas para sentir o vento na tarde quente de domingo, e todos puderam perceber certa solidão uns nos outros. E se esse mesmo vento pudesse mais tarde trazer más notícias, naquele momento ela se sentiu acalentada e acompanhada por outros tantos seres que podiam estar aguardando um acontecimento como aquele para levantar e o olhar para fora do seu pequeno mundo.

Inconscientemente parou de sofrer, suas roupas já estavam molhadas e se chorou realmente não percebeu, mas sentiu que estava leve. Resolveu que os sentimentos pessimistas que sentia até a pouco seriam levados pela água, escorreriam pelos ralos, para que pudesse iniciar o ano com vontade de viver novas emoções, sem medo do que pudesse vir no futuro, sem desacreditar que pudesse amar de novo e ser feliz com esse amor. Lembrou do cheiro do bolo. Respirou fundo e foi como se sentisse o sabor de bolo quente na boca.
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