quarta-feira, 8 de outubro de 2008

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Pensando o Poema do Cazuza

Gustav Klimt, Sea serpents IV

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Sopro qualquer - Lassidão e abismo*


Acordou lentamente, sem abrir os olhos. Uma lassidão se interpôs ao seu desejo de levantar e caminhar ao sol, que naquele dia em particular reluzia lascivamente. Não conseguia concentrar o pensamento em uma idéia. Perguntou-se de onde viria aquele misto de torpor e aflição. Rapidamente uma lembrança tornou-se nítida, um rosto, uma boca, mãos e o passado retornando sem aviso, sem piedade. Há muito que havia varrido os sentimentos para um local escuro na mente. Um encontro inesperado, uma lanterna iluminando o subterrâneo de uma mina abandonada. Nada nela ansiava por despertar os sentimentos do passado. Arrefecida a loucura da paixão sangrenta, os sonhos foram apaziguados pela negligência em construir um amor sereno. Pavimentou seus dias com uma calmaria modesta, uma rotina morna, mas que agora, estranhamente lhe parecia medíocre. Apertou as pálpebras. Não, definitivamente não permitiria a interferência sorrateira dos encontros-desencontros, da fissura do amor destrutivo, que necessitava de espasmos de dor para realçar sua presença. Reteve em si um pouco mais do calor do leito, respirou profundamente, abriu os olhos e observou o rosto ao lado, que dormia sereno. Imaginariamente vislumbrou o sorriso - iluminado pela luz que refluía através do vidro da janela - e que lhe cobria de carinho mesmo ao longe. No fundo sabia que, se o passado ousava lhe lançar os tentáculos, os braços deste homem lhe seguravam para impedir a queda livre no precipício.

(*pensando no Poema do Cazuza - post anterior - "com desculpas ao poeta", por pensar em cima da sua criação um outro cenário).